sexta-feira, 17 de julho de 2009

Os Bunkers


"As grades do condomínio
São prá trazer proteção
Mas também trazem a dúvida
Se é você que tá nessa
Prisão..."
(Minha alma - O Rappa)
.
Quando eu era puto a gente vivia junta!
.
No prédio da minha infância, em Lisboa, os vizinhos eram díspares em classe social e económica mas nem por isso deixavam de ser vizinhos: no terceiro andar vivia um Secretário de Estado de qualquer coisa do governo de Salazar, vinham buscá-lo de manhã num carro preto com chauffeur fardado; no meu andar havia a nossa família, típica classe média assalariada, e uma casa onde viviam pessoas que vinham da provìncia, em quartos sub-alugados, no rés-do-chão um dono de drogaria de bairro e um vendedor ambulante de fruta.
.
E não era estranho!
.
No prédio ao lado vivia o então Governador da Guiné e quando eu chegava à escola primária lá estava o Prof. Hermano Saraiva, então ministro da educação, que vinha a pé desde casa, no bairro social, e ia tomar a bica aos "Gelados Chile" antes de seguir para o ministério.
.
Quando eu era puto não havia condomínios fechados nem guettos!
.
À tarde a gente miúda do prédio brincava no quintal comum e a Isabel, filha do governante, comia pão com manteiga ao lanche, como a Adelaide, neta do homem-da-fruta e o Julinho, filho do droguista de bairro.
.
As classes sociais existiam mas também coexistiam, nem que fosse na partilha do espaço físico da residência, no pleno exercício da utopia urbana, que afirma a cidade como “espaço primeiro dos encontros, do ajuntamento enquanto festa".
.
Após a revolução de Abril e o subsequente êxodo massivo das populações dos campos para as grandes metrópoles, a desproletarização e crescimento exponencial da classe média sem outros valores que não os do vácuo novo-rico, criou um fetichismo da ostentação e da propriedade privada bem como uma predominância exacerbada e sempre crescente dos aspectos económicos na sociedade.
.
A negação da igualdade, afirmação do exibicionismo novo-rico, valor essencial da classe média, expressa-se pela crescente concentração de rendimento nas mãos de pequenos grupos, gerando uma marcada diferenciação entre os que tudo têm e os demais, a quem nem sequer resta espaço para existir dentro da cidade.
Para uma grande parcela destes últimos resta como perspectiva a tentativa de sobrevivência em pobreza ou mesmo miséria, ou o envolvimento em esquemas de acentuada violência, onde a vida se torna coisa sem valor.
.
Nascem os bairros-campos-de-concentração: os guettos!
.

Rapidamente, a cidade torna-se protagonista da distopia urbana.
Os inimigos cruzam os muros e, num quadro de extrema desigualdade sócio-político-cultural, urge a criação de muros dentro de muros.
.
Assim, o medo das cidades caóticas, abarrotadas das classes "perigosas", leva os segmentos sociais de maior rendimento a fugirem dos espaços públicos convencionais, produzindo enclaves fortificados e profundamente exclusivos, para o seu trabalho, residência, lazer e consumo, gerando assim novas modalidades de exclusão, sendo
os espaços públicos abandonados à sua própria desintegração em zonas bem determinadas na cidade e no seu crescente subúrbio.
.
Real ou imaginado, este medo do crime é freqüentemente entrelaçado com preconceitos de classe, ansiedades raciais e racistas, noções estereotipadas do pobre, do marginalizado, do preto, do cigano, para gerar construções ideológicas híbridas, sancionando um novo padrão de segregação espacial e discriminação social, o condomínio fechado, a cidade de muros e de bunkers, a arquitectura do medo!

Luís Pontes

Sem comentários: